O amor que guardei para mim

Não espere uma crise para saber o que realmente importa

Por Malu Silveira
Por Malu Silveira
Publicado em 17/11/2016 às 8:30
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Não aguarde períodos difíceis e horas complicadas para dar valor às pessoas e aos momentos  / Foto: Pixabay

Não aguarde períodos difíceis e horas complicadas para dar valor às pessoas e aos momentos Foto: Pixabay

Um, dois, três. Respira fundo. Não desiste, não. Um, dois, três, quatro, cinco. Não está passando. A primeira bolsa de soro. Lá vem a segunda. Meu Deus, a terceira. E agora a quarta. Vai passar, doutor? Tenha calma. Um cobertor, dois cobertores, três cobertores. Que frio, eu quero um abraço apertado. Preciso ir no banheiro, moço. Tira fio pra escutar o coração, coloca fio de volta. Vamos levantar para tomar remédio. Sobe cama, desce cama. Alguém me cobre? Moço, isso é normal? Calma, vai passar. Mas eu sou tão nova, por que comigo? Quando eu sair daqui, juro que vou dar valor ao que realmente importa. 

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Eis que passou, mas a lição bateu e ficou. Por que essa mania inexplicável de só se dar conta quando já passou? Quando já não faz mais sentido? Quando poderia ter sido feito antes? Quando perdemos algo ou alguém que tinhamos como garantido? O odioso hábito de deixar as tarefas para depois. De postergar o que nos faz bem. De procrastinar o que temos que fazer. 

Doutor, eu tomei o remédio, mas ainda não passou. É normal? Calma, vai passar. Meu Deus, eu não aguento mais. Fecha os olhos, vai. Não consigo. Abro os olhos de novo. Essa claridade me irrita, mas a escuridão me apavora. Eu vou virar de lado, vai que melhora. Não passa. Vira pro outro. A mesma coisa. Eu quero chorar. Será que se eu chorar alivia? Não consigo. Ai, meu coração está apertado. Vai, desce, lágrima! Não sai. Eu sou tão boa com choro, por que não consigo chorar agora? O que foi que eu fiz para merecer isso? Meu rosto está em chamas, que vergonha. Quanto tempo já passou? Cai gota do soro, depois outra e mais outra. Meu braço dói - e minha alma também. Olho para um lado, para outro. Quero ir no banheiro, moço. Tira fio para escutar o coração, coloca fio para escutar o coração. 

Não deixe que apenas viagens fantásticas lhe dêem respostas que você precisa receber todo santo dia. Não permita que lhe coloquem para baixo diariamente para só depois perceber que bastava um fora para se permitir ser feliz. Não espere explodir de amargura para só então entender que tudo o que você precisava era dizer o que sentia - sem se importar com o que os outros achariam. Não ocupe sua rotina insanamente para só entender muito tarde que o cotidiano é exaustivo demais porque você só preencheu seu tempo com obrigações. Não espere perder tudo para só então dar valor à .

Não espere ter medo para saber o que é tranquilidade

O médico passa e fala com outra médica. Param no meu leito. Estão olhando para mim e gesticulando. O que será que foi agora? Como você se sente? Ainda não passou, doutor. Vai passar. Cai gota, outra gota e outra. Até que a última cai. O jeito é aceitar, eles vão dizer mais uma vez que vai passar. Quem sabe não passa mesmo? Pronto, você está liberada. O sol já nasceu lá fora. E parece que eu nasci também. Agora eu vou fazer tudo diferente, pensei. Vou me preocupar com o que realmente importa.

Não permita que estraguem seu dia para depois enxergar que as horas continuavam ali, prontas para serem resignificadas. Não espere destruir relações para entender que raiva e massa de bolo são iguaizinhas, esfriam rápido. Não reclame da falta de tempo para depois perceber que em 24 horas dá para fazer tanta coisa. Não espere sofrer por alguém para entender o que é amor. Não deixe que todos se afastem para compreender que suas atitudes sempre estão equivocadas e você provavelmente age como um babaca. Não espere por períodos sofridos de autoconhecimento para saber que todo momento é tempo de se analisar. Não espere ter medo para saber o que é tranquilidade. 

Quero ir pra casa. Meu coração está apertado, meu braço dói - minha alma também.Finalmente entro no carro. Inspira. Um, dois, três, quatro. Expira. Vou abrir a janela, vai que com o vento melhora. Obrigada. Respiro mais uma vez. Um, dois, três, quatro. Obrigada. Que horas são? Quero chegar logo. Mais uma vez, obrigada. Já me sinto mais forte! Um, dois, três, quatro. Passa um semáforo. E outro. Mais outro. E aquela brisa leve de uma manhã tão espertamente despretensiosa parecia ter um importante aviso a dar: que eu não espere mais uma crise para finalmente entender o que - e quem - realmente importa.

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