Recife

Liberdade, uma avenida e um substantivo que se confundem e se completam

Wladmir Paulino
Wladmir Paulino
Publicado em 28/09/2015 às 17:01
Leitura:

Avenida Liberdade tem uma vida como qualquer outra via da zona oeste do Recife. / Foto: Wladmir Paulino/Portal NE10

Avenida Liberdade tem uma vida como qualquer outra via da zona oeste do Recife. Foto: Wladmir Paulino/Portal NE10


Esqueçam os muros brancos com os nomes 'Governo do Estado de Pernambuco - Secretaria fulana de tal. Presídio beltrano não sei o quê'. A Avenida Liberdade só não faz jus ao nome no primeiro terço de seus quase 2,5 km, onde se encontram as unidades que formam o Complexo Prisional do Curado. Depois, é uma via normal como qualquer bairro da Zona Oeste do Recife. Ali há de tudo que o seu bairro tem: mercados e mercadinhos. Oficinas de carros e motos, igrejas, fiteiros e barracas. Só há um item que muitas, mas muitas ruas da capital não possuem: um asfalto tão liso que buraco parece coisa de outro mundo. O preto é de quem foi recém-recapeada, não remendada - falta apenas a faixa no meio indicando que é mão dupla, embora a largura seja pouquíssimo recomendável para veículos trafegando em sentido contrário.

A Liberdade, via, começa num cruzamento logo depois que se entra no bairro do Curado, passa por Totó, Sancho, Tejipió e chega ao fim em Jardim São Paulo. Na placa verde desbotada acima do sinal de trânsito a palavra mais legível ao lado da seta que aponta em frente é Hospital Otávio de Freitas. Mas a liberdade, substantivo feminino, é algo muito mais complexo no endereço das prisões. Vejamos o exemplo de Dona Dadá. Ela mora pouco antes das unidades e trabalha exatamente em frente ao Presídio Marcelo Francisco de Araújo. Separando apenas um vão de pouco mais de um metro de largura com bombons, biscoitos, pipocas e outras guloseimas. Ela se sente mais livre hoje do que há 30 anos. Motivo: Violência. "Quando eu vim morar aqui, nem taxi entrava. Depois dos presídios, me senti mais segura porque tem Polícia passando toda hora", afirma.

Presídios à parte, Dona Dadá reclama do mesmo jeito que uma dona de casa esbraveja com a falta de cuidado do Poder Público. Caminhão de lixo passa de vez em quando. Inclusive foi flagrado pela reportagem no exato momento da entrevista. A rua, nas palavras dela, é imunda. "Você acha que isso aqui tá limpo?", indaga, ao mesmo tempo apontando para garrafas de plastico, restos de comida e sacos de salgados rasgados no meio-fio. E ainda aproveita a oportunidade para denunciar. "Se você não der dinheiro, os garis deixam o lixo todo entulhado aí na frente!"

Aqui ganhou o reforço de Preguinho, como ela, morador da Avenida há décadas. Olhar perdido e aquele indefectível hálito de quem já tomou mais uma do que outras, esbraveja para o passado: "Ninguém entrava aqui. Era muito assalto. Ali era um campo de futebol, já joguei muito lá', comenta, sorrindo, mostrando os poucos dentes que lhe restam.

Foto: Wladmir Paulino
Dona Dadá mora e trabalha na Avenida Liberdade. - Foto: Wladmir Paulino
Foto: Wladmir Paulino
Cemitério Parque das Flores, na Avenida Liberdade. - Foto: Wladmir Paulino
Foto: Wladmir Paulino
Jonas e Walter batem papo num bar na Avenida Liberdade. - Foto: Wladmir Paulino
Foto: Wladmir Paulino
Antiga Delegacia de Roubos e Furtos de Veículos virou um ferro-velho - Foto: Wladmir Paulino
Foto: Wladmir Paulino
Igreja evangélica na Avenida Liberdade - Foto: Wladmir Paulino
Conjunto Habitacional na Avenida Liberdade -

Sheila trabalha numa dessas loterias on-line. Inicialmente estava assustada em falar sobre a vizinhança. Mas basta esquecer e olhar para os lados e dizer: "Sim, aqui é uma vida normal". É uma rua como outra qualquer, com gente passando pelas calçadas irregulares, subindo nos ônibus que nem sempre param perto da calçada e pedindo para o repórter, câmera em punho registrando o vai e vem: "Filma nós!"

Deixando a ala das prisões de lado é que se deixa para trás também qualquer indício de que algo ali foge ao cotidiano do resto da cidade. A quantidade de salões de beleza é grande, alguns encastelados em grades, outros com simples portas que não estão abertas por causa dos ar-condicionados - todas têm. O Cemitério Parque das Flores, sem a ostentação dos mausoléus de mármore de Santo Amaro, pode até ser confundido com um jardim se você passar rápido demais.

Num bar poucos metros depois do cemitério, três amigos terminavam um prato de galinha guisada. O assunto do dia era o peito de um deles, machucado recentemente, mas nada a ver com bala. "Aqui a gente conversa de tudo, futebol, fala da vida. Estamos aqui todo dia", disse Jonas, o do peito ferido. Ficam ali por duas, três horas ou até ficar bêbado e voltar para casa aperreando a 'nega véia', como disse outro, com toda a propriedade, sorvendo os dois últimos goles de garrafinha de 350 ml de cerveja.

A antiga Delegacia de Roubos e Furtos de Veículos apresenta um cenário mais feio. Carros provavelmente com a idade dos presídios (36 anos) - se brincar até mais velhos - ainda se amontoam esfarelando de ferrugem. Um segurança monta guarda na porta de entrada conversando com vizinhos. Todos roubados cujos donos pouco se importaram em virem buscar. E lá devem permanecer ainda por um bom tempo, pois não há data para esvaziar o local.

Avançando mais para perto do fim, com a rua Itanhenga, que pelos moradores virou uma extensão de 50 metros da Avenida Liberdade, a paisagem muda um pouco. Dos estabelecimentos comerciais quase enganchados uns nos outros chegamos a fileiras de casas grandes, de muros bem pintados e grades cuidadas, uma ou outra passa imagem de certo abandono como uma em que esqueceram as bandeiras de São João. Prédio é tão difícil de encontrar quanto buraco na rua. Muito do motivo do vento constante apesar do sol forte. O que vemos a torto e a direito é duplex. E é também nesse trecho em que a Liberdade ganha parceiros que ajudam ainda mais seu nome a contrapor ao cenário do início. Ela é transpassada pelas ruas Felicidade, Orfeu do Carnaval e Leão XIII. Sim, até nome de Papa veio abençoar a Liberdade, provavelmente na esperança de que o nome de outra avenida que a corta seja o presságio do que seus habitandes gostariam: Tempo Feliz. 

Mais lidas