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Dia da Consciência Negra: cabelo crespo é sinônimo de orgulho e resistência

Amanda Tavares
Amanda Tavares
Publicado em 19/11/2016 às 0:08
Alice e a mãe, Marina Melo
Alice e a mãe, Marina Melo FOTO: Alice e a mãe, Marina Melo

Neste segundo dia de reportagem da série #SomosNegros, em homenagem ao mês da Consciência Negra, contaremos a história de Alice Melo, 10 anos. Ela representa milhares de crianças que, independentemente de se identificarem ou não como negras, sofrem preconceito e lutam pelo direito de usarem seus cabelos da maneira que querem. Com apoio da família, Alice cresceu sabendo das suas origens. Aprendeu a ter orgulho dos ancestrais e fala, com propriedade, sobre história e costumes do povo negro no Brasil. O texto é de Amanda Tavares.

Alice Melo tem apenas 10 anos, mas muita história para contar sobre preconceito. Já sofreu bullying em duas escolas e na rua. Por causa da cor da sua pele, da religião que segue (a Jurema Sagrada), mas sobretudo por causa do seu cabelo crespo e volumoso. Numa escola em que estudava, as “brincadeiras” se tornaram ofensas tão graves que levaram a garota a ficar deprimida.

Com ajuda da família, Alice conquistou maturidade para enxergar a beleza dos seus cabelos crespos. Fotos: Diego Nigro Com o apoio da família, Alice conquistou maturidade para enxergar a beleza dos seus cabelos crespos. Fotos: Diego Nigro

Sempre atentos, ao perceberem a mudança brusca de comportamento da menina, os pais investigaram. E decidiram pela conscientização em relação às suas origens. Alice tem aprendido diariamente sobre como viveram seus ancestrais, quais eram seus costumes, suas crenças, seus traços físicos. Assim, sente-se mais orgulhosa do cabelão solto, dos torçais e turbantes. E defende, convicta, o direito de ser quem ela escolheu ser. Responde com segurança a prejulgamentos, tentativas de ofensas de quem não conhece a sua história e de alguma forma tenta magoá-la.

Mas, antes de atingir essa maturidade, não foram poucos os dias de sofrimento. Alice chegava da escola, recolhia-se no quarto, não saía da cama. Os pais achavam estranho a menina, que antes cantarolava pela casa, calada. Às vezes perguntava à mãe: “Você me acha mesmo bonita?”. A família pensou em doenças. Tentou investigar. Nenhum diagnóstico preciso. Até que um dia os pais foram chamados à atenção por familiares. Alice publicou um desabafo no Facebook. Dizia que estava triste porque as pessoas não aceitavam o seu cabelo. “É comum, a gente que tem cabelo crespo, ouvir: ‘Amarra esse fuá’; ‘caiu um caminhão de pente ali’. Isso machuca muito. Mas não pensei que ia chegar ao ponto de minha filha precisar expor numa rede social. E com palavras pesadas”, relata a mãe, Marina Melo.

“Se não posso soltar o meu cabelo, nem expor a minha crença, como vou viver?”, dizia um trecho do texto escrito por Alice, que muito incomodou os pais. “A frase ‘como vou viver?’ remete a acabar (com a vida). Eu poderia ter perdido a minha filha por causa de preconceito?! Foi quando entendemos o porquê de toda aquela mudança de comportamento dela”, conta a mãe.

Os pais foram à escola e lá se depararam com outro problema sério: apesar de terem consciência de que precisam trabalhar temas ligados à diversidade, os professores encontram barreiras devido à reação de alguns pais. “Tem pai e mãe que diz aos professores que eles estão ali para ensinar português, matemática e outras disciplinas. Não admitem que falem sobre o comportamento das crianças. Acham que isso é para se ensinar em casa. Mas não ensinam. E algumas crianças acabam se tornando malvadas, ofendendo as outras”, defende Marina.

Juntos, educadores da escola e os pais da menina encontraram uma solução. A família foi convidada para ir à instituição e promover uma palestra/exposição. “Levamos os trajes que utilizamos nas cerimônias religiosas, um material do Senegal, explicamos a origem do povo negro, o significado de algumas palavras. Explicamos por que o cabelo é assim. As crianças passaram a entender melhor e foram mudando o comportamento. Algumas meninas, inclusive, voltaram a usar os seus cabelos naturais. E a se valorizarem como realmente são. Nossa ideia não era levar problema para a escola, mas encontrar uma solução. E conseguimos. Gosto muito de uma frase do meu marido que diz: ‘Quem nega ancestralidade nega a existência’. A partir do momento em que Alice começou a perceber que existia, que a pele e o cabelo tinham um porquê de serem assim, ela começou a se vestir melhor, voltou a cantar em casa, a valorizar a sua história”, orgulha-se a mãe.

Pais da garota, junto com os educadores da escola, Alice e a família foram convidados a organizar exposição sobre cultura afro-brasileira na escola em que a garota estuda

Convicta, empoderada e bem mais feliz, Alice reconhece que o preconceito é algo muito longe de ser vencido. Volta e meia escuta uma frase ofensiva, vê um gesto de reprovação na rua, ouve perguntas inconvenientes. “Procuro ignorar. Se perceber que as pessoas insistem, chamo meus pais. Eles sempre estão por perto. Cuidam bem de mim. Prestam atenção em tudo. E isso me faz mais segura”, ressalta a menina. “Ensinamos a nossa filha a não revidar, não agir com falta de educação, mas a tentar explicar às pessoas que tudo tem um porquê. O preconceito se mostra justamente por causa da falta de conhecimento sobre um determinado assunto”, argumenta Marina Melo.

“Tenho orgulho do meu cabelo, da minha religião, da minha cor. Sou descendente de índio, português, africano. De tanta gente... Hoje em dia, no Brasil, não se pode ofender as pessoas como se fosse normal. Antes de alguém falar do meu cabelo, precisa lembrar que, na sua família, pode ter alguém com o cabelo parecido. Devemos respeitar as crenças, as roupas, as características de todos. Para julgarmos algo, é preciso ter conhecimento”, ensina Alice sobre o que a vida fez com que, tão cedo, ela aprendesse.

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