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Dia da Consciência Negra: adepta do candomblé, garota de 11 anos é exemplo de fé e superação

Amanda Tavares
Amanda Tavares
Publicado em 18/11/2016 às 0:00
Laura Luiza tem orgulho da religião. Foto: Diego Nigro / JC Imagem
Laura Luiza tem orgulho da religião. Foto: Diego Nigro / JC Imagem FOTO: Laura Luiza tem orgulho da religião. Foto: Diego Nigro / JC Imagem

Existe uma filosofia africana chamada “Ubuntu”, que segue o princípio de que o mundo não é uma ilha; vivemos por nós e pelos outros. Essa filosofia influenciou nomes como Nelson Mandela, Desmond Tutu e José Saramago. Prega o conceito do “Eu sou, porque nós somos”, que inspirou o nome desta série de reportagens, #SomosNegros, iniciada hoje e publicada até domingo (20). As crianças Laura, Alice e Antonio contarão suas histórias para mostrar, no mês da Consciência Negra, como, desde cedo, aprendem e ensinam, diariamente, sobre respeito à religião, ao cabelo e à cor de pele. Conheceremos também o trabalho social dos integrantes do Terreiro Xambá, um dos mais tradicionais de Pernambuco. A série é uma parceria entre o JC e o Blog Criançada (JC Online). Os textos são de Amanda Tavares.

Para lembrar o Dia da Consciência Negra, Laura conta história de luta contra o preconceito. Foto: Diego Nigro / JC Imagem Para lembrar o Dia da Consciência Negra, Laura fala sobre luta contra o preconceito. Foto: Diego Nigro/JC Imagem

 

Laura Luiza Oliveira, 11 anos, cresceu vendo seus familiares cultuarem os deuses africanos. Desde muito pequena, frequenta o Terreiro de Xambá, em Olinda, um dos mais tradicionais de Pernambuco. Tem orgulho de falar das suas origens. De contar sua história. De dizer que é filha de Oxum, orixá feminino ligado ao ouro, à fertilidade, às águas dos rios e das cachoeiras, associado à beleza, à vaidade. A menina se sente linda e poderosa ao olhar-se no espelho, toda vestida de amarelo, cor que remete à sua “mãe” no candomblé, religião seguida por frequentadores do Xambá. O orgulho, a vaidade e o empoderamento, por vezes, perdem espaço para a vergonha, a indignação, a tristeza. É que nem todo mundo enxerga sua religião, seus santos, seus cultos como sagrados.

A garota nunca se esquece do dia em que estava na escola, brincando com as amigas, e perguntaram se ela era do candomblé. “Sim!”. Ao ouvir a resposta, uma das garotas revidou: “Não serei mais sua amiga, tenho nojo de você!”. No mesmo dia, à noite, Laura, já em casa, recebeu mensagens no celular pelo aplicativo WhatsApp. O texto era sobre a morte do ator global Domingos Montagner (que se afogou ao nadar no Rio São Francisco, em Sergipe, em setembro deste ano). Atribuía o falecimento do ator a um possível envolvimento com religiões de matriz africana e especificamente com o orixá Exu.

Laura, que aprendeu com a família a admirar e a respeitar o orixá protetor, guardião dos templos, casas e pessoas, respondeu imediatamente: “Minha religião cultua Exu!” Ouviu respostas ofensivas e preconceituosas. “Você é ruim. Sua religião é ‘do diabo’, seu cabelo é feio e você é gorda. Sua mãe colocou você nessa religião para que você cultue o demônio e nunca deixe de segui-lo, mesmo quando for adulta...”

Resistente e convicta dos princípios que segue, apesar da pouca idade, Laura chamou a família. A mãe e o tio procuraram a escola, uma unidade pública que funciona em Olinda, perto da comunidade Xambá. Uma educadora que, naquele dia, diante da ausência da diretora, estava responsável pela escola, tomou a frente. Pediu calma. Prestou solidariedade.

No mesmo dia, um professor de artes ouviu a conversa sobre Exu em sala. Não sabia do ocorrido. Mas se lembrou de uma aula em que já tinha falado de respeito à diversidade. Laura contou o que tinha se passado. E ouviu: “Lembre-se do que já ensinei. Seus colegas terão que aprender a respeitar a sua religião”, defendeu.

"O candomblé é Foto: Diego Nigro / JC Imagem "O candomblé é onde me sinto bem, me sinto forte", declara Laura Luiza.  Foto: Diego Nigro / JC Imagem

Do mesmo jeito que existem professores que defendem, há outros preconceituosos, relata a menina, lembrando-se de um dia chuvoso em que vestiu um casaco branco e colocou batom azul. Assim que entrou em sala, um professor disparou: “O que é isso? Você hoje veio de Pokemón Go?”, provocando inquietação e zombaria entre os estudantes. “Ele não estava falando da minha religião, mas agiu com preconceito da mesma forma”, reclama.

A mãe, Leila Luiza Oliveira, sempre atenta ao que ocorre no ambiente escolar, orienta a filha a defender-se sem agredir. “Temos que respeitar todas as religiões. É o que digo à minha filha todos os dias. O que a gente não quer para a gente não faz para os outros. Se for para conversar sobre o que é cada religião, explicar como funciona, tudo bem. Mas discutir, competir, nunca! Violência gera violência. Oriento Laura para que não revide. Se a situação se agravar, como já aconteceu, ela chama a família e a gente chega junto”, salienta a mãe, falando com a experiência de quem, muito antes de ver a filha enfrentar o preconceito, já experimentou o que é ser julgada pela crença religiosa. “No meu trabalho, não toco nem no assunto. Posso ser demitida, porque a maioria dos funcionários é evangélica”, afirma.

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A espiritualidade, os laços familiares e de amizades construídos durante seus 11 anos de vida e de vivência no Terreiro Xambá e no Espaço Cultural Grupo Bongar, onde são realizadas atividades diversas para crianças da comunidade (confira matéria no domingo, 20), fizeram de Laura uma criança forte, orgulhosa dos princípios que aprendeu a respeitar e seguir, além de feliz com o que a religião proporciona a ela e à família. “Me sinto muito bem no candomblé. Os ambientes do centro religioso e do Espaço Cultural são muito agradáveis. Faço o que gosto. Não sou obrigada por ninguém. Me incomodo quando as pessoas ficam dizendo que eu pratico ‘coisas do diabo’. Não fico à vontade junto de quem critica os rituais da minha religião”, contesta.

Mais fortes que as críticas, porém, é o aprendizado de Laura ao participar de inúmeros rituais religiosos, atividades culturais e de lazer vividas graças ao candomblé. “Gosto de tudo. De estar com os amigos e com a minha família. De ter espaço para brincar, de conhecer as histórias dos meus ancestrais através do memorial (refere-se ao Memorial Severina Paraíso Silva, instalado no Terreiro Xambá, que abriga documentos como fotografias, livros e objetos que contam a história do grupo). É o lugar onde eu me sinto bem, me sinto forte!”. O lugar onde os adeptos do candomblé saúdam Oxum: Ora Yê Yé Ô!

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