Debate

Na Argentina, uma eleição sem Cristina Kirchner

Ana Maria Miranda
Ana Maria Miranda
Publicado em 18/11/2015 às 8:10
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Scioli (esquerda) e Macri (direita) se enfrentaram em debate no último domingo / Foto: AFP

Scioli (esquerda) e Macri (direita) se enfrentaram em debate no último domingo Foto: AFP

No debate de domingo passado, o candidato do kirchnerismo, Daniel Scioli, mencionou por duas vezes o Papa Francisco, mas ignorou, totalmente, a presidente Cristina Kirchner. Depois de uma moderada participação na primeira etapa da campanha, na reta final da disputa pela sucessão, a chefe de Estado praticamente sumiu do mapa. Na tentativa de mostrar-se como um dirigente independente, Scioli eliminou Cristina de sua estratégia, de seu discurso e de todos os eventos importantes.

— Hoje há uma vantagem do candidato da oposição, Mauricio Macri, em torno de oito pontos. Eliminar Cristina era uma necessidade para Scioli — explica o analista político Sergio Berenztein.

Para ele, “a ausência da presidente foi negociada pela Casa Rosada”.

— Quando aparecia Cristina, a figura de Scioli se diluía. Só com os votos da presidente, que o candidato já tem, não se conquista a Presidência — assegurou.

A chefe de Estado, que deixará o poder no próximo dia 10 de dezembro, nunca mostrou entusiasmo na campanha de Scioli, um candidato que Cristina não queria, mas foi obrigada a aceitar porque era o mais bem posicionado nas pesquisas. O atual governador da província de Buenos Aires sempre foi desprezado pela presidente e considerado um dirigente pouco fiel ao projeto kirchnerista.

Nas primeiras semanas de campanha, ambos apareceram juntos em vários atos políticos, mas a expressão de desagrado de Cristina era evidente. Para analistas e jornalistas locais, a presidente “parecia quase fazer campanha para Macri”.

— Sou dos que pensam que Cristina leva Scioli à derrota — opinou o jornalista Luis Majul, apresentador do programa “La Cornisa” e autor de livros sobre a era kirchnerista.

Na visão de Majul, “o apoio da presidente assegura a Scioli apenas os votos do núcleo duro do kirchnerismo, que não chegam a 40%”.

— Tudo o que ela diz e faz irrita cerca de 60% dos argentinos — enfatizou.

Nos últimos atos públicos em que estiveram juntos, Scioli e Cristina não conseguiram evitar a tensão. A presidente se referiu ao governador como “nosso candidato” e fez sempre questão de ocupar o centro da cena, sem deixar muito espaço para Scioli.

Durante todo o debate, o candidato do kirchnerismo tentou mostrar-se distante do movimento político que representa. Cada vez que Macri fazia uma acusação sobre políticas adotadas nos últimos 12 anos, Scioli pedia que “deixasse de debater com um governo que vai terminar”. Para o governador, descolar-se de Cristina virou questão de sobrevivência.

ONGS - As mães e avós da Praça de Maio, que nunca esconderam sua simpatia e total adesão aos governos de Néstor e Cristina Kirchner, decidiram anunciar, publicamente, seu voto no candidato do kirchnerismo nas eleições presidenciais do próximo domingo, Daniel Scioli. E, ainda, fizeram um alerta: “Um eventual governo de Mauricio Macri significaria um retrocesso que poderia implicar, até mesmo, na libertação de militares condenados e presos por crimes da ditadura”. Assim explicou ao GLOBO a presidente das Avós da Praça de Maio, Estela de Carlotto, uma das promotoras do documento “Memória e justiça nas urnas”, que será divulgado nesta quarta-feira (18) por várias organizações de defesa dos direitos humanos.

— Não vamos permitir um retrocesso. Já lutamos contra um ditador como Jorge Rafael Videla (que comandou o golpe de estado de março de 1976) e vamos continuar lutando a favor da democracia — assegurou Estela, de 85 anos.

O texto também foi assinado por uma ala das Mães da Praça de Maio, pela Associação de Familiares de Presos Políticos e Desaparecidos, pela organização Filhos (integrada por filhos de desaparecidos) e pelo Centro de Estudos Legais e Sociais (Cels). Na primeira etapa da campanha, estas ONGs manifestaram certa desconfiança em relação a Scioli (que iniciou sua carreira política no governo Carlos Menem, que indultou militares), e a própria Estela assegurou que o candidato do kirchnerismo seria “um presidente de transição”, até que Cristina pudesse retornar ao poder, em 2019. Mas hoje, com a disputa entre Scioli e Macri no primeiro segundo turno presidencial da História do país, as ONGs de direitos humanos decidiram ser mais enfáticas.

— Existem duas opções: uma que propõe esquecimento e retrocesso e outra que vai dar continuidade e fortalecer o que já conseguimos, além do que falta ser feito — frisou Estela, que no ano passado encontrou seu neto, o músico Ignácio Hurban, filho de Laura Carlotto, sequestrada e assassinada pelos militares.

As avós, mães e familiares de desaparecidos asseguram que Macri vai retirar benefícios obtidos nos últimos anos; libertar militares e civis presos; boicotar os julgamentos que ainda devem ser realizados e impedir o avanço de investigações judiciais, sobretudo no caso de civis (principalmente empresários), acusados de cumplicidade.

— Se procurar nos arquivos, verá que Macri disse coisas terríveis e chegou a cogitar abrir as prisões para “libertar esses pobres velhos que foram injustamente condenados” — assegurou a presidente das Avós.

A equipe do candidato da aliança opositora Mudemos nega que Macri tenha afirmado algo assim e que esteja pensando em liberar repressores da ditadura. O que o prefeito portenho disse, e pode ser encontrado em arquivos de jornais, é que em seu eventual governo acabaria “a roubalheira dos direitos humanos”, em referência a diversos benefícios obtidos por ONGs, como as Mães da Praça de Maio (o caso está sendo investigado pela Justiça). Macri também afirmou que “os direitos humanos não podem existir em termos de revanche”.

— Macri virá com a ideia de reconciliação e, para nós, isso é inadmissível. Vamos lutar com unhas e dentes pela memória e pela justiça — apontou a presidente da Associação de Familiares de Presos Políticos e Desaparecidos, Lita Boitano, de 84 anos, cujos dois filhos, Adriana e Miguel Angel, estão desaparecidos.

Lita esteve este ano em Roma e reuniu-se com o Papa Francisco para conversar sobre a abertura dos arquivos do Vaticano sobre a ditadura argentina. O processo, segundo ela, “está avançando, assim como, também, o diálogo com a Igreja argentina para que seja feita uma autocrítica sobre seu papel durante o regime militar”.

— Macri quer virar a página, e isso nós não vamos permitir — enfatizou Lita.

SEM RECEBER REPRESENTANTES - O candidato da oposição, segundo os assessores dele, não pretende modificar o que foi feito nos últimos anos, como a anulação das chamadas leis do perdão, que permitiram a abertura de dezenas de processos judiciais. O que não está claro é se Macri impedirá projetos que permitam julgar civis.

— Em seus oito anos como prefeito, ele nunca nos recebeu e ainda eliminou um pequeno subsídio que nos ajudava. Foi uma ofensa. Já o governo nacional nos deu respostas e nos ajudou financeiramente, não podemos esquecer isso — insistiu Estela, que costuma frequentar atos políticos na Casa Rosada.

A presidente das Avós afirmou que “ainda resta muito a ser feito, principalmente na Justiça”.

— Todo aquele que cometeu um delito deve ser preso. Ainda nos falta encontrar cerca de 400 netos, desaparecidos e fortalecer nossos centros de memória. Não podemos falar em democracia sem isso — declarou Estela, que, como muitos defensores do kirchnerismo, acusou Macri de “representar o passado e querer desfazer tudo o que foi feito nos últimos 12 anos”.

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