A ocupação internacional do Haiti por tropas militares é alvo de críticas de especialistas da Rede Jubileu Sul, que abrange diversos movimentos sociais, organizações populares e religiosas Foto: Thony Belizaire/AFP PHOTO
“Na falta de uma polícia nacional haitiana ou de uma força de repressão local para conter explosões do movimento de massa e as próprias reivindicações por democracia, por direitos humanos e por melhores condições de trabalho e vida, as [empresas] transnacionais recorrem a uma ocupação internacional chancelada pela Organização das Nações Unidas (ONU)”, critica o historiador e integrante da Rede Jubileu Sul, Miguel Borba de Sá, ao falar sobre a Minustah, durante o Seminário Nacional sobre o Haiti, feito na semana passada.
O evento discutiu a ocupação militar no país e sua relação com a pacificação das favelas no Rio de Janeiro, que teria estratégias semelhantes àquelas feitas em território haitiano.
O historiador afirmou que muitas empresas internacionais se utilizam da situação de ocupação militar para estabelecer sedes em solo haitiano, uma vez que o país tem mão de obra popular e legislação frágil em relação à questão ambiental. Para Miguel, o Brasil se dispôs ao “triste papel de comandar a repressão contra a população haitiana”.
O ministro da Defesa, Jaques Wagner, informou, no último dia 21, que as tropas brasileiras começarão a sair do país caribenho em 2016. Segundo o ministro, o efetivo militar, que neste mês de maio era de 1.343 homens e mulheres, cairá para 970 em junho. A partir do próximo ano, 850 militares estarão apenas em Porto Príncipe, capital do país caribenho.
Para especialistas presentes no seminário, há uma relação muito forte entre a operação do Exército brasileiro no Haiti e a chamada pacificação das favelas no Rio de Janeiro, principalmente no Complexo da Maré. Para Miguel, a pacificação tornou-se um projeto de contenção social para sustentar as desigualdades que existem na cidade. Ele explicou que o aumento dessas desigualdades gera descontentamento social, principalmente de quem está em situação de vulnerabilidade e de empobrecimento.
“Nesse sentido, a ocupação das favelas cariocas e do Haiti tem esse componente de muita semelhança, de contenção das populações mais pobres e mais vulneráveis, mas que também são as que potencialmente teriam maiores chances de, ao se rebelarem, colocar em risco os interesses econômicos que estão por trás dessa história toda, tanto aqui quanto lá”, acrescentou o historiador.
Comunicadora comunitária do conjunto de favelas da Maré há 12 anos, Gizele Martins conta que os tanques de guerra, usados na pacificação, “censuram, matam e tiram o direito de ir e vir da comunidade”. “Quando vejo que os mesmos tanques de guerra que estão no Haiti também estão na favela da Maré, me sinto muito próxima daquela realidade. Isso é uma agressão enorme, uma violência enorme pra gente que está dentro desse território.”
Ela questiona uma solução baseada em “armamento pesado”. “Por que se investe tanto em armamento, no Haiti e no Brasil, e não se investe em educação, moradia, em direitos básicos, que fariam aquele país e a Maré funcionarem de modo a permitir que os cidadãos tivessem direitos de fato?”, indagou.
A Minustah foi criada por Resolução do Conselho de Segurança da ONU, em fevereiro 2004, para restabelecer a segurança e normalidade institucional do país após sucessivos episódios de violência, que culminaram com a partida do então presidente, Jean Bertrand Aristide, para o exílio. O comando da missão foi designado ao Brasil.
Nesses 11 anos, cerca de 15 mil militares do Brasil serviram na Minustah. A cada seis meses todos eram substituídos. A missão da ONU ajudou a manter a segurança para a execução de eleições presidenciais em 2006 e 2010. A Minustah também atuou no esforço de reconstrução do Haiti após o terremoto de janeiro de 2010.
O Ministério da Defesa, consultado sobre as questões apresentadas no seminário, informou que “não cabe ao Ministério qualquer manifestação política sobre a atuação da ONU”. “Apenas colocamos as tropas à disposição daquela entidade, após concordâncias dos poderes Executivo e Legislativo”.
Sobre atitudes repressivas, o ministério disse que existem equipes de investigação para verificar denúncias de abuso de poder ou transgressão de suas normas por parte das tropas: “A chefe da missão no Haiti, representante especial do secretário-geral da ONU, não deixou de apurar qualquer denúncia relatada”. A referida atuação sempre será contra os agentes perturbadores da ordem pública, e nunca contra a população, acrescentou a nota.
Segundo o ministério, a preparação para atuar no Haiti incluiu treinamentos específicos para lidar diretamente com a população civil, cenário distinto da preparação normal das forças armadas, que seria em conflitos armados. “Anos depois, quando foi determinada a atuação em comunidades da cidade do Rio de Janeiro, esses ensinamentos foram usados”, informou.
O Ministério das Relações Exteriores respondeu, em nota, que a missão de paz “tem contribuído para a preservação de ambiente de segurança propício à reconstrução do país” e que está na área “a pedido do governo e se mantém por interesse haitiano”. Existe uma força policial no Haiti, que está sendo treinada com o apoio da Minustah.
O governo do Rio de Janeiro foi procurado, mas ainda não se posicionou.