Dia a Dia

Estupro: a vida de quem convive diariamente com os casos

Thiago Vieira
Thiago Vieira
Publicado em 15/09/2016 às 15:00
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Casos de estupro ocorrem em grande frequência / Foto: EBC

Casos de estupro ocorrem em grande frequência Foto: EBC

A onda de estupros no Recife tem alarmado as pessoas quanto ao tema. Se os casos assustam a população, ginecologistas convivem com relatos de estupro e crime rotineiramente na profissão e, embora preparados e experientes para resolver a situação, é impossível se acostumar com a crueldade dos criminosos.

"Essas histórias perturbam a mente o dia inteiro. É muito difícil. Depois de todos esses anos ainda fico abalada", afirma Silvana Fittipaldi, ginecologista formada há 35 anos e que já trabalhou no setor de emergências do hospital Barão de Lucena e atualmente atende no hospital Otávio de Freitas, ambos na Zona Oeste do Recife. 

Apenas este ano, houve 965 casos registrados pela Secretaria de Defesa Social de Pernambuco (SDS-PE). O número, já assustador, deve ser ainda maior devido aos que deixam de ser registrados. "Acredita-se que o número é maior do que o divulgado pelo número de subnotificações. Os pacientes muitas vezes deixam de denunciar por medo", acredita o médico Carlos Reinaldo, ginecologista do Centro Integrado de Saúde Amaury Medeiros (Cisam).


Os casos que chegam ao hospital, em sua maioria não são levados à polícia. O médico não tem o poder de fazer a queixa, mas apenas afirmar as evidências de que um abuso ou um estupro aconteceu. A partir daí, existe um trabalho interdisciplinar que lida com os danos tanto físicos quanto psicológicos, composto por médicos, enfermeiros, assistentes sociais e psicólogos, atuando em conjunto no atendimento ao paciente.

Silvana Fittipaldi atualmente trabalha no setor de diagnóstico infanto-puberal do hospital estadual Otávio de Freitas. Ela afirma que a grande maioria destes crimes que acontecem com crianças e adolescentes são feitas por pessoas que convivem com elas. Os incestos se enquadram nos casos em que não há, necessariamente, uma relação consanguínea, mas também àqueles que a vítima reconhece em seu abusador um parentesco, como padrastos ou tios de consideração, por exemplo.

Por ter esse elo familiar, o adulto criminoso constrói uma relação de poder sobre o vulnerável, utilizando técnicas de persuasão. "A criança aprende desde sempre que aquilo que é feito pelo adulto é o correto. Então ela não conta para ninguém, porque se sente errada e culpada. Os abusadores também criam uma relação de segredo com a vítima", afirma Silvana.

Maioria dos abusos acontecem com pessoas muito próximas

Maioria dos abusos acontecem com pessoas muito próximasFoto: EBC

Quando não usam do poder de manipulação partem para a chantagem. Eles elegem alguém com importância afetiva para a vítima e ameaçam. "Às vezes o abusador escolhe alguém para usar como ameaça. Diz que se a criança contar vai matar essa pessoa, por exemplo", explica.

Ainda que o crime normalmente seja cometido por um homem próximo, outros familiares agem numa forma de 'cúmplice silenciosa'. O termo é usado normalmente quando a mãe, por exemplo, sabe o que acontece mas não denuncia. O motivo às vezes é o medo, mas também ocorre por uma dependência do abusador, seja ela financeira ou emocional. "Várias vezes as mães trazem as filhas aqui uma vez e, quando constatamos o caso de abuso elas desaparecem. Infelizmente não podemos fazer nada", lamenta Silvana.

Aborto é permitido em casos de estupro

Embora ilegal na maioria das situações, interromper uma gravidez proveniente de um estupro é permitido no Brasil. O próprio hospital é responsável por promover o aborto, caso a paciente deseje.

Se a gravidez estiver até a oitava semana, utiliza-se uma medicação chamada misoprostol. Entre a 8º e a 12º, realiza-se a Aspiração Manual Intrauterina (Amiu) um processo cirúrgico simples. Após a 12º é necessária uma curetagem uterina. Passada a 20º semana o caso se complica, pois o bebê já tem chance de viver fora do útero.

Um crime sem classe social

Os casos de estupro na Zona Norte chocaram o Recife por terem acontecido em uma área nobre e de maior concentração de pessoas de uma classe econômica mais alta. Mas, tanto nesses casos em que a vítima não reconhece o criminoso quanto nos que existe uma relação familiar, as ações não têm um classe social definida.

"O perfil do crime é que normalmente acontece com mulheres jovens e crianças, mas quanto à classe social não há um padrão. Acontecem em todas elas", afirma Carlos Reinaldo. "Eu atendo vítimas de vulnerabilidade social do interior e também pessoas com grande poder econômico", exemplifica Silvana.

Atualmente, o atendimento oferecido na rede pública teve grande evolução, sendo superior às instituições privadas. O assunto ainda é considerado como um tabu na rede particular, enquanto existe uma estrutura preparada para lidar com o tema nas redes públicas especializadas. 

Para efeito de estatística, sem nenhum motivo comprovado, um levantamento coloca os dias de sexta-feira e de sábado com maiores incidências de estupro e abuso.

Nem a experiência afasta os sentimentos de quem lida com o assunto

Por ser um dos crimes mais abomináveis que existem, os casos de estupro e abuso chocam até mesmo quem convive profissionalmente com o tema no dia a dia há anos. Os médicos relatam que é impossível não ter sentimentos quando os casos chegam ao hospital.

"É muito difícil. O que eu sinto hoje é igual ao que eu sentia quando iniciei na profissão. Não muda", lamenta Silvana, que completa "quando tentamos convencer as vítimas ou os responsáveis a fazer a denúncia e eles se negam ou desaparecem nos frustra um pouco".

Sentimento que não difere do de Carlos Reinaldo. "Sempre me assusto com as crianças vítimas deste tipo de violência, e principalmente nos casos onde o abuso resulta em gestação".

Por terem sido casos atípicos, os recentes acontecimentos têm ganho destaque e gerando maior comoção. Mas o problema está longe de ser pontual e o tema precisa de uma maior atenção e eficiência no combate.

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