Assédio

Chega de Fiu Fiu

Por Andrea Dip
Por Andrea Dip
Publicado em 16/12/2014 às 18:17
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“Eu tinha uns 11 anos. Era Carnaval, as ruas cheias. Eu era uma criança. Um homem passou a mão em mim e acariciou meu cabelo dizendo ‘fooofa’ mostrando a língua depois”.

“Já estava perto de dobrar a esquina da rua onde moro a noite. Um cara vinha na direção contrária a minha. Quando chegou perto disse ‘quer chupar meu pau?’ Pensei logo que seria estuprada porque a esquina da minha rua é bem deserta”.

“Eu tinha 10 anos, estava andando de bicicleta e um cara, que veio andando de bicicleta, passou do meu lado e apalpou minha bunda. Fui para casa chorando muito. Eu tinha me sentido invadida, mas não tinha entendido o que tinha acontecido”.

“Andava a pé até a academia quando tinha 15 anos. Como, com o tempo, comecei a ficar muito incomodada com as cantadas, olhares, motoqueiros buzinando, acabei decidindo colocar uma calça de moletom e uma camiseta por cima da roupa de academia”.

“Escolho minhas roupas todos os dias pensando nos lugares por onde vou andar, que ônibus vou pegar para evitar cantadas”.

 / Foto: Reprodução Think Olga

Foto: Reprodução Think Olga

Esses são alguns depoimentos obtidos na pesquisa realizada pelo site Think Olga com 7762 mulheres no segundo semestre de 2013 para a campanha “Chega de Fiu Fiu”. A intenção era fazer com que as mulheres falassem sobre os sentimentos e experiências ao receber “cantadas” nas ruas. Se você é mulher, certamente tem ao menos um relato parecido e, se não for, pode perguntar para a mulher que está ao seu lado agora ou para sua mãe, amiga, namorada, filha, colega de trabalho: todas terão histórias semelhantes para contar. Nenhuma delas envolverá alegria ou gratidão. A maioria falará em raiva e medo. Na pesquisa citada, 81% das mulheres disseram que já deixaram de fazer alguma coisa (ir a algum lugar, passar na frente de uma obra) com medo de assédio, 90% disseram já ter trocado de roupa pensando no lugar onde iriam por medo de assédio e 83% declararam não gostar de receber cantadas.



Em entrevista à Pública, a jornalista Juliana de Faria, idealizadora da campanha, conta que decidiu dar voz às mulheres a respeito do assédio de rua depois de ter passado por situações abusivas e perceber o quanto isso era naturalizado pelas pessoas: “Eu sempre fui vítima de assédio sexual. A primeira vez aconteceu quando eu tinha 11 anos, foi um assédio verbal e me chocou muito. Eu estava esperando para atravessar a rua de casa e um carro diminuiu a velocidade e começou a falar coisas que eu nem entendi na hora mas me assustaram tanto que eu comecei a chorar. Aí no caminho de volta uma senhora me perguntou porque eu estava chorando, eu contei e ela disse ‘ah que bobagem, você deveria estar feliz, na minha idade você vai sentir falta’ e ali eu já entendi que não podia falar a respeito disso. Com 13 anos eu sofri um abuso físico, quase um estupro. Saindo do metrô o cara me puxou pelo braço falando que ia me comer e eu consegui me desvencilhar porque ele estava bêbado demais. Mas se ele não estivesse tão bêbado como isso iria acabar? Nunca falei disso publicamente porque sentia essa resistência, quase como se fosse uma frescura. Aí quando teve aquele caso do Gerald Thomas, que enfiou a mão por dentro do vestido da Panicat, que foi horrível, eu vi amigos meus defendendo aquilo. Gente que eu conhecia, amigos meus defendendo essa cultura de estupro. Foi um wake up call para começar esse trabalho”.




Trecho de infográfico da pesquisa Chega de Fiu Fiu / Reprodução Think Olga

O site começou a publicar ilustrações e abriu espaço para as mulheres contarem suas experiências. O próximo passo foi montar um mapa interativo para que as mulheres apontem os locais onde sofreram assédio. “Uma menina me escreveu dizendo que viu que em um bar na rua dela tinha muita denúncia, então ela imprimiu e levou pro dono do bar”. A Chega de Fiu Fiu está preparando um documentário – atualmente aberto a doações no Catarse -, com meninas usando óculos com câmaras que gravam as abordagens que sofrem ao longo do dia. Recentemente, a campanha também publicou, em parceria com o Núcleo Especializado de Promoção e Defesa dos Direitos da Mulher da Defensoria Pública de São Paulo (Nudem) uma cartilha explicando o que é assédio sexual, porque é um comportamento nocivo, como denunciar e como encaixá-lo na lei. A cartilha está sendo distribuída em São Paulo e pode ser compartilhada, reproduzida e impressa.

OLGA
Recentemente, o Instituto Avon, em parceria com o Data Popular, anunciou os resultados da pesquisa “Violência Doméstica: o jovem está ligado?” que entrevistou 2000 jovens entre 16 e 24 anos. Do total, 68% mulheres declararam já ter levado uma cantada ofensiva; 96% reconhecem a existência de machismo no Brasil; 66% das mulheres afirmaram positivamente quando questionadas (com base em uma lista de agressões apresentadas) terem sofrido algum tipo de ataque; 55% dos homens admitiram ter xingado, empurrado, ameaçado, ter dado tapa, impedido de sair de casa, proibido de sair à noite, impedido o uso de determinada roupa, humilhado em público, obrigado a ter relações sexuais, entre outras agressões e 44% mulheres afirmaram terem sido tocadas ou assediadas por homens em festas.

ASSEDIO
Trecho de infográfico da pesquisa Chega de Fiu Fiu mostra que mulheres trocam de roupa com medo de assédio / Reprodução Think Olga

Daniela lembra um estudo da engenheira Haydee Svab para explicar como homens e mulheres se apropriam de forma diferente da cidade: “O mapa mental da cidade da mulher é menor do que o mapa mental do homem, o espaço público é extremamente condicionado ao gênero. Horários, regiões da cidade, meios de transporte, pontes. Mulheres têm medo de andar em pontes por causa das reiteradas histórias de estupro, por exemplo. Deixam de aceitar trabalhos porque teriam que andar a pé a noite ou pegar um ônibus em um lugar ermo”. Ela lembra que para o homem às vezes é difícil perceber a gravidade do assédio porque nunca acontece quando ele está junto. “Quando o homem é o agente da agressão, acha que está tudo bem. E quando está com sua companheira não vê acontecer porque um macho respeita o outro macho. Tem um discurso de que ‘o homem não pode se conter’, que além de tudo culpabiliza a mulher mas na minha percepção isso tem mais a ver com uma punição. ‘Você saiu do esperado, usou uma roupa mais curta, foi mais longe, circula sozinha, então a gente vai ter que te punir da forma mais tosca que a gente conhece’. Porque a rua é do homem. E se você está lá, seu corpo está à disposição. Se você usa seu peito pra vender cerveja ou desfilar no carnaval ok, porque todo mundo está lucrando. Se quiser deixar o peito de fora porque está calor, quer fazer um topless na praia ou simplesmente amamentar seu bebê, não. Porque teu corpo não te pertence. Ele pertence aos homens ou ao Estado, no caso do aborto, por exemplo”.

Sobre o PUA, acrescenta: “Se você com o mesmo discurso conquista todas, não tem um sujeito ali, não existe autonomia. É um ser destituído de individualidade, de desejo, um objeto. Uma pessoa pra dizer ‘não’ precisa ser um sujeito. Pode ser que essas pessoas nem estejam necessariamente querendo ser violentas, o problema é você estar andando na rua e ter sua intimidade violada constantemente pelo desejo do outro que acha que pode te abordar. É a afirmação dessa violência constante, dessa cultura do estupro que acua as mulheres todos os dias. E isso tem que parar”.

FORA DA LEI

Se o cara pega na mulher sem ela dar abertura isso já é uma violência
A defensora pública Ana Rita Souza Prata explica que se a abordagem PUA invade o espaço da mulher na rua ou em uma casa noturna a ponto de incomodar a mulher encaixa-se no contexto de assédio e se houver contato físico pode caracterizar violência. “Se o cara pega na mulher sem ela dar abertura isso já é uma violência. ‘Ah, mas eu só flertei, só paquerei’. Se não há consentimento e abertura é uma violência” define. “E a gente sabe que por trás disso está uma forma de dominação. O espaço público é meu, é masculino e eu vou fazer aqui o que eu quiser. Os crimes sexuais não são só os de filme americano ou o maníaco do parque. As violências acontecem dentro dos relacionamentos e nas ruas todos os dias e por isso você treinar homens para esse tipo de abordagem é um absurdo. Com a cartilha a gente quer conscientizar de que o assédio é uma violência sexual e pode sim ser caracterizada como crime”, detalha a defensora.

Perante a lei, o assédio sexual se restringe ao ambiente de trabalho, mas existem as tipificações de importunação ofensiva ao pudor e atentado ao pudor (no caso de não haver contato físico) que podem ser aplicadas caso a vítima deseje denunciar esse tipo de abuso. A reportagem entrou em contato com a Secretaria de Segurança Pública de São Paulo, o Ministério da Justiça, a Secretaria de Políticas para as Mulheres, a 1ª e a 2ª delegacias de Defesa da Mulher de São Paulo e a Delegacia de Polícia do Metropolitano e foi informada de que não existem estatísticas específicas sobre estas contravenções. Mas a recomendação do Nudem e da própria SPM é a de que as mulheres denunciem esse tipo de assédio. “A sociedade ainda naturaliza a cantada de rua, até porque justifica essa violação de direitos das mulheres pela roupa curta, pelo decote. Como se a mulher fosse culpada. Mas quanto mais as mulheres denunciarem ao 180 ou às delegacias especializadas pra colocar isso em pauta pra a gente mobilizar o sistema de justiça, mais a gente vai conseguir combater essa impunidade” defende a secretária adjunta de Enfrentamento à Violência da Secretaria, Rosangela Rigo. Ela reconhece que o 180 ainda não recebe muitas denúncias desse tipo mas lembra que por muito tempo a violência doméstica também não era denunciada por ser naturalizada. “Por isso essas campanhas, marchas e caminhadas de mulheres são tão importantes. Para que aumente essa conscientização e o empoderamento das mulheres e diminua a naturalização desse tipo de comportamento”.

A doutora em psicologia Daniela Rozados, que faz parte do PoliGen, grupo de estudos de gênero da Escola Politécnica da USP, vai além. Para ela, muitas vezes a própria agredida não se reconhece como vítima, tamanha é a naturalização do assédio. “Por vezes a mulher não percebe o quanto o ir e vir dela no espaço público está condicionado a esse papel. Isso que eu acho mais grave em termos psicológicos. Porque ela fica aprisionada no discurso machista de que ela não existe como sujeito. Isso em si já é bastante sofrido mas muitas vezes a vitima não percebe que isso é produtor de sofrimento. Nessas abordagens do PUA ou no assédio de rua, o corpo está ali para satisfazer desejos. Mas quando não é física, essa violência está tão incrustada que é de baixa percepção por parte da própria vítima. E pra quem reconhece como violência gera nervosismo, ansiedade, medo de andar por determinados lugares”.

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