Cazuza

Confira íntegra de entrevista com Ezequiel Neves

Ne10
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Publicado em 02/04/2008 às 15:00 | Atualizado em 16/08/2023 às 16:03

Tatiana Notaro
Do Caderno C/ JC

Ezequiel Neves tem 73 anos. É jornalista, produtor musical e orgulha-se de ser o "pai" (ou avô, como a ele se refere o baterista Guto Goffi) da banda Barão Vermelho. Até hoje, Zeca trabalha com os meninos do Barão, atualmente fazendo trabalhos individuais, e se formos comparar os relatos sobre ele, datados daquela época, o produtor musical e jornalista continua o mesmo maluco, amante da boemia, das artes (como ele mesmo se declara) e das drogas ("das boas!"). Sua amizade quase siamesa com Cazuza entrelaça à vida dos dois - então há jeito de falar do poeta exagerado sem juntar-se para um papo ao seu fiel companheiro (de noitadas no Baixo Leblon ao dia do resultado do teste da aids). Entusiasmado com a idéia de relembrar seu "neto", Ezequiel Neves concedeu uma entrevista ao JC.

Jornal do Commercio – Você lembra quando conheceu Cazuza e como foi o começo da história dele na música?
Ezequiel Neves – Conheci Cazuza antes dele virar cantor. O conheci como boêmio, em 1979... a gente papeava. Eu sempre fui boêmio, ele também e ficamos amigos instantaneamente. Eu nunca soube que ele escrevia, nessa época. Cazuza tentou muitas coisas até chegar à música, mas não era a dele. Quando eu roubei a fita demo do Barão Vermelho na casa do (...) achei aquela banda maravilhosamente underground, diferente. Soube que era o Cazuza quem cantava ali e liguei para Lucinha (Araujo, mãe do cantor, a quem Zeca já conhecia), e disse "ouvi uma fita da banda do seu filho. Quem faz aquelas letras?. Aí ela me repondeu: "é o Cazuza". "Pois se prepare, porque seu filho é absolutamente genial!" (gargalhas).

JC – Isso foi quando, exatamente?
ZECA – Faz as contas aí... Eu tinha uns 47 anos. Ele devia ter uns 24, era o mais velho dos barões, e tinha ódio disso (risos).

JC – A sua posição foi a mais incômoda quando Cazuza resolveu sair do Barão. Por que você assumiu os dois?
ZECA – Olha, quando Cazuza me disse que ia sair da banda, eu disse a ele que era a maior bobagem esse negócio de querer virar patrão dele mesmo, sabe? O Barão sempre foi uma excelente moldura pra ele, a luz maior era pra ele, que também era letrista e cantor... não tinha motivo. Quando eu disse ao Cazuza que ia cuidar dois dois, ele me disse que eu fazia muito bem. Eu fui "salomônico" (risos).

JC – Lucinha contou no livro Cazuza - só as mães são felizes, que era você quem estava com Cazuza no dia em que ele soube que estava com aids. Como foi esse dia?
ZECA – Nossa, foi muito difícil. Primeiro porque eu já sabia. O médico, ao invés de contar direto para o Cazuza, contou primeiro ao João (pai do cantor) e à Lucinha e os dois me contaram. Achei aquilo erradíssimo! Até porque ficamos os três o tempo todo regulando ele, "não beba tanto" e tal. Bem, mas naquele dia, ele insistiu para que eu fosse, mas me deixou na sala de espera do consultório. Quando saiu, foi logo dizendo "estou, estou, estou"... Aí a gente foi para Ipanema, era umas 19h. Ele estava desesperado! Eu tentei acalmá-lo, dizendo que tinham outros médicos e que ele não era promíscuo, então não tinha como estar contamidado.

JC – Era a época do Exagerado?
ZECA – Sim, ele ia estrear o primeiro álbum solo, Exagerado. Naquele dia a gente tinha um ensaio desse show, mas ele não quis ir. Disse que ia pra onde tudo havia começado, e foi pra casa dos pais.

JC – Há muitas comunidades sobre Cazuza no Orkut e em muitas delas, vemos discussões sobre o que teria inspirado a letra de Codinome beija-flor. Você assina a parceria da música, pode explicar sobre o que fala a letra?
ZECA – (risos) Cazuza foi internado com uma "baronite aguda", porque estava com febres altíssimas e queimou um baseado. Foi neste hospital onde a gente compôs Codinome e a letra fala de uma imagem de alguém, mas não alguém específico. Fizemos umas mudanças porque eu achava a letra abstrata demais. Há umas sacadas geniais dele, como aquela história de "terceiras intenções". Mas é isso, não foi pra ninguém não.

JC – Qual foi o motivo desta internação? Já era por causa da aids?
ZECA – Foi em 87 e ninguém sabia do que se tratava. Olhe... a morte é insubornável! Os pais dele fizeram de tudo para salvá-lo! Os exames desta internação deram negativos à contaminação por HIV. (pausa) Em 79, 80, a aids era chamada de "câncer gay", não se sabia nada sobre ela.

JC – O quê você lembra sobre a fase da doença de Cazuza?
ZECA – Foi uma coisa horrorosa. Eu estava brigado com Lucinha e João e Cazuza exigia a minha presença. Foi um calvário, eu não sei como sobrevivi. A primeira vez que ele tomou o AZT teve efeitos colaterais horríveis, porque essa é uma droga fortíssima. A Lucinha sempre foi muito cuidadosa com Cazuza, então distribuiu compridos de AZT com os amigos mais próximos. (pausa) Eu moro em frente a uma favela ótima (a Pavão Pavãozinho, no Rio) e uma vez tava tendo batida policial lá e eu não tive como entrar para comprar pó. Então cheirei AZT e fiquei louco... (risos) Era muito forte aquilo...

JC – Qual foi a última vez em que você viu o Cazuza?
ZECA – Foi na véspera da morte dele. O achei muito ausente... (pausa) Saí da casa dele naquele dia, fui pra minha casa e cheirei muito. Me contaram que foi a Lucinha quem me ligou no dia seguinte, me avisando que ele tinha morrido, mas eu não lembro. Sei que caí no apartamento e acordei com a Dulce Quental, o Nilo Romero e o Frejat, que tinham arrombado a porta. Pus uma camisa que o Cazuza tinha me dado e fui pro velório. Não me lembro de nada... só de ver pessoas chegando. Você quer uma frase bonita pra colocar ai? O Cazuza é a ausência mais presente na minha vida!

JC – Vai muito ao cemitério?
ZECA – Túmulo é uma coisa muito forte, sabe? Principalmente pro Cazuza, que era muito livre. Mas eu vou lá, levo flores, acendo um cigarro Holllywood e coloco em cima do túmulo... ele fuma todinho (risos).

JC – Como seria a relação do Zeca aos 70 com o Cazuza aos 50?
ZECA – A gente já teria brigado umas 500 vezes, mas isso não é palpável. Não quero luzes, quero mágica! Não sei o que seria, sei que ele não está mais aqui... (pausa) Hoje eu estava ouvindo o primeiro álbum solo dele (Exagerado, de 198*). É tão diferente de tudo, sabe? Não sei se é melhor, mas é maravilhosamente diferente...

JC – E as comemorações pelos 50 anos dele?
ZECA – A Lucinha sempre manda rezar uma missa. De lá, vamos para a Pizzaria Guanabara, no Leblon... com ele, viu? Por que eu vou levar um pôster enorme do Cazuza! (risos) Me lembrei de quando eu fiz 49 anos. O Cazuza fez uma festa e disse a todo mundo que eu estava fazendo 50 anos, aí quando foi no ano seguinte, realmente meus 50, o pessoal falava: "de novo?". (risos)