Uma parte da gente foi embora ontem para outra ressurgir amanhã Foto: reprodução
A morte é algo que às vezes chega de mansinho, anunciada com um chuvisco que muda o cheiro da terra e só depois vem o temporal. Outras tantas vezes ela é uma enchente não premeditada e arromba sua porta levando tudo e deixando uma lama insolúvel. Vão dizer-lhe que o detergente do tempo ajuda a limpar a marca de lama na parede, mas não limpa, ele ajuda a entendermos que trata-se de uma nova pintura para a casa.
A morte é uma dessas coisas sobre a qual devíamos conversar com muito mais frequência. Dessas coisas essenciais e altamente prováveis que inexplicavelmente a escola deixa de fora da ementa.
Até porque morrer é bom, uma vez que viver é extraordinário e sem a morte não entenderíamos o conceito de vida. Inventaríamos qualquer outra coisa para colocar no lugar, mas definitivamente não seria a vida.
Aproveito esse texto para dizer como gostaria que os amigos e familiares tratassem minha morte, já que nunca me perguntaram e se eu tocar no assunto sem preâmbulo vão me jogar no hospício ou no check-up hospitalar. Por favor façam uma festa bacana, não precisa ser grande, mas prestem uma atenção especial às músicas e bebidas. Providenciem as melhores e divirtam-se! Minha existência por essas bandas, com base no sentimento de gratidão que carrego, pede isso.
Estamos morrendo e vivendo a todo momento, em cada gesto, em cada gole, em cada ausência e presença. Uma parte da gente foi embora ontem para outra ressurgir amanhã, assim é a vida. Cabe a gente dar espaço para o melhor de nós nascer.
As melhores referências sempre nos acompanharão, não conseguiremos deixá-las morrer, nem se quiséssemos. São os alicerces da nossa existência enquanto estivermos aqui. Podem não estar mais à disposição de um toque, mas isso não é tudo. O sentimento que guardamos, a construção de momentos em conjunto, e de outro punhado de coisas, se desdobram em ondas e rastros inapagáveis. São essenciais para você e o mundo ser o que são hoje. Valem muito mais que qualquer tipo de matéria. Respire, agradeça e deixe ser. Não pese. O peso só faz doer os ombros e nada mais.
Quando eu morrer, por favor festejem!
A luz também depende da sombra para existirFoto: acervo pessoal
Já os que se foram cedo, a conversa é outra. É preciso dar espaço para a dor, assim como para o abraço e aceitação. O sofrimento estará presente, possivelmente até o fim dos dias conscientes. Ele nos terá moldado uma outra pessoa, uma nova pessoa. Perceba que ainda assim estamos falando de algum tipo de renascimento e para isso é preciso acolher a morte. A luz só existe porque a sombra também é real.
Peço que tratemos a morte com um pouco mais de sabedoria, dignidade e, porque não, leveza. Ela não se veste de capuz escuro e nem carrega uma foice, isso somos nós quem fazemos.
Peço que não tenhamos medo de conversar sobre esse fenômeno tão milagroso quanto o nascimento, pois nada amedronta mais do que o desconhecido. E se alguém lhe pedir o ouvido emprestado para falar da saudade de quem já se foi, simplesmente o empreste com compaixão genuína. Mais cedo ou mais tarde todos nós vamos precisar dessa escuta.